Kátia Abreu: Constituinte em tempos de paz

A senadora explica as razões para se implementar uma Assembleia Constituinte e defende um Estado diferente do que foi cristalizado pelas ideias de 1988.

03/10/2011

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Kátia Abreu, senadora e presidente da CNA

Há dois tipos de constituição democrática. Umas definem apenas a forma de organização do Estado, as limitações dos seus poderes e os direitos e garantias dos cidadãos.

Esse tipo de constituição estabelece princípios gerais que, por sua natureza, são perenes e resistem às mudanças históricas porque refletem sentimentos permanentes dos homens.

Essas constituições não precisam ser mudadas com frequência e servem aos povos por longos períodos. O exemplo é a Constituição americana, em vigor desde 1787.

As constituições do segundo tipo, além dos princípios gerais, tratam de regular numerosos aspectos da vida das nações. Essas, inevitavelmente, trazem a marca transitória da época em que foram escritas e, com o passar do tempo, tornam-se anacrônicas ou mesmo inaplicáveis. É o caso da do Brasil.

A Constituição brasileira é excessivamente detalhista, regulando minúcias da vida social, segundo a visão dominante em 1988.

Ela se estende por 250 artigos, mais centenas de parágrafos, incisos e alíneas, compondo, ao final, muitas centenas de dispositivos que dominam o sistema legal e só podem ser alterados por três quintos dos deputados e dos senadores, em dois turnos de votação.

A isso acrescentemos 97 artigos das Disposições Transitórias, com status constitucional e efeitos duradouros. Não seria exagero afirmar que os constituintes quiseram petrificar o direito para o tempo futuro e impor às gerações vindouras a sua visão particular do mundo e da história.

A Constituição brasileira, não obstante seus grandes méritos como diploma democrático, envelheceu precocemente. As mudanças que ocorreram no mundo e no Brasil, entre 1988 e hoje, foram grandes demais.

Parece que um século inteiro se passou nessas duas décadas.

Os grandes princípios democráticos e os avanços sociais inscritos na Carta continuam válidos, e ninguém deve alterá-los. São cláusulas de pedra que servirão ainda a muitas gerações. Mas há muita coisa na Constituição que se tornou um obstáculo a uma gestão racional do Estado e ao equilíbrio entre direitos e deveres. Por isso vivemos em um estado de permanente revisão constitucional.

De 1992 até hoje, já foram aprovadas 73 emendas constitucionais. De 1989 até hoje, foram propostos ao Congresso 4.666 projetos de novas emendas para reformar a Constituição, dos quais 2.210 ainda estão em tramitação. Paralelamente, o Supremo Tribunal Federal deu provimento a 757 Ações Diretas de Inconstitucionalidade, tendo ainda provido, em parte, outras 203.

Neste momento, 1.116 Adins aguardam julgamento. Há, portanto, uma revisão constitucional em andamento, por diversos meios e de um modo assistemático e desordenado.

As ideias dominantes sobre o funcionamento do Estado, da economia e da sociedade no Brasil de 1988 já não existem mais, não servem mais.

O mundo todo mudou. Nada está mais no lugar. O Brasil será certamente um grande protagonista do novo mundo, mas, para isso, precisamos de um Estado muito diferente do que foi cristalizado pelas ideias da Constituição brasileira.

Reformar a Constituição pelos ritos convencionais é uma tarefa que não terá fim.

O Congresso tem outras tarefas e não pode concentrar-se nesse objetivo com exclusividade. Além disso, para uma reforma em grande extensão, o corpo legislativo precisa de uma legitimação que só uma eleição específica pode conferir.

A Câmara Revisora Constituinte não pretende ser uma assembleia de sábios. Esse tipo de assembleia só pode existir na imaginação, nunca no mundo real. Muito menos no mundo da democracia.

Mas ninguém pode contestar que uma assembleia composta de homens que não estão envolvidos com carreiras políticas e que não precisam se reeleger tem muito mais possibilidades de responder apenas perante à nação em geral do que aos interesses particulares e às corporações de todo tipo que controlam nossa vida pública.

Por que esperar por uma ruptura ou um desastre para fazer o que é preciso? Por que não fazer isso em tempos de paz?

Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo em 1º de outubro de 2011.

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