ENTREVISTA

Cláudio Lembo: ‘A Constituição está nos resguardando’

Ao site Consultor Jurídico, o ex-governador de São Paulo e um dos fundadores do PSD diz que, apesar de ameaças populistas, as instituições têm funcionado e que a Constituição vem sendo seguida

25/05/2020

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Para Lembo, manifestações por intervenção militar não preocupam: “Há pessoas extremas em toda a sociedade”.

 

Apesar de ameaças populistas, as instituições têm funcionado e que a Constituição vem sendo seguida: “O Supremo funciona, o Supremo tem dado decisões que são aceitas pelo Executivo”. A afirmação é do jurista Cláudio Lembo, ex-governador de São Paulo e um dos fundadores do PSD. Em entrevista ao jornalista André Boselli, do site Consultor Jurídico, ele falou sobre o funcionamento da democracia e também sobre sistema tributário, liberalismo e excessos no combate à corrupção.

Veja a seguir, os principais trechos da entrevista. (A íntegra pode ser vista aqui)

ConJur — Em 2006, ao fim do mandato de governador de São Paulo, o senhor afirmou, em entrevista do programa “Provocações”, que o Brasil estava vivendo uma plena democracia. Doze anos depois, em um seminário sobre Direito Constitucional, disse que o Brasil tem uma democracia frágil, falsa e meramente de fachada e que a Constituição é algo meramente secundário. O que mudou de lá para cá e por que mudou?

Cláudio Lembo — O que mudou foram particularmente as figuras públicas. Havia uma certa respeitabilidade nos procedimentos no jogo político, e atualmente o nível político e a fraseologia política estão muito baixos. Porque nós chegamos a uma democracia populista. O populismo não tem respeito pelas instituições. A democracia não vai mal, as instituições estão aí, funcionam, não há coisas mais graves acontecendo. Porém, há um desrespeito, assim como da justiça, às próprias instituições. Isso que é grave. É próprio do populismo que estamos vivendo.

O senhor se refere a quem?

A todos os políticos. Não é esse ou aquele; é que não há mais respeito um pelo outro. Nos debates, você vê que há sempre uma forma agressiva, há palavras de baixo calão, grosseria, ou então uma falsidade expressiva. Pode ser o presidente da República ou podem ser os governadores. Não vai bem a classe política. O ser humano político brasileiro está num momento de muita fragilidade.

E o senhor também afirmou que a Constituição não existe mais, ela seria secundária. Por quê?

Eu diria que hoje ela está sendo bem respeitada. O problema é que… Um quer ser a própria Constituição — uma visão quase absolutista da ideia — e outros querem aplicá-la com flexibilidade. Então, eu diria que a Constituição hoje está presente, sim, e é o que está nos resguardando contra grandes equívocos. Felizmente ela está revigorada e com bastante legitimidade.

O Supremo funciona, o Supremo tem dado decisões que são aceitas pelo Executivo — com truculência verbal, mas são formalmente aceitas. O Executivo também tem elaborado suas normas e elas são aceitas pelo Judiciário; o Legislativo tem trabalhado com certo afinco. Então, as instituições estão funcionando, o linguajar que está sendo utilizado pelo operador político é que é mau.

Ele [presidente da República] é o agente populista, ele vem do populismo. Quer dizer, não é um homem com sofisticação intelectual, sofisticação verbal, nada disso. Ele é direto com o povo. É populismo puro.

E nessas tentativas de conter o populismo, o senhor entende que pode estar havendo ativismo judicial?

Também. O juiz sair do seu espaço, o que é grave. E nisso o Supremo tem sido o causador de grandes problemas porque avança nas atividades legislativas e pratica atos impróprios do Judiciário. Não é bom, isso. De qualquer forma, o Judiciário tem sido mais equilibrado, principalmente o Supremo. Mas houve uma época de ativismo judicial inaceitável. Porque se o Legislativo está em mora, o Judiciário não pode se colocar no lugar do legislador. E isso tem acontecido muito nos últimos anos.

O caso da homoafetividade [união estável de casais homoafetivos], que foi o Judiciário que decidiu. O caso do aborto [de fetos anencéfalos], que foi o Judiciário que decidiu. Tem que deixar para o Legislativo essas situações que são de extrema gravidade para a sociedade ou de muita sensibilidade. Não pode o Judiciário se arvorar em uma posição superior.

E sobre a decisão do ministro Alexandre de Moraes, que suspendeu a nomeação do novo chefe da Polícia Federal, Alexandre Ramagem?

Ele [ministro Alexandre de Moraes] aplicou o artigo 37 da Constituição; porque se caracterizava interesse pessoal [do presidente da República], contra o princípio da impessoalidade, e trazia imoralidade administrativa. Então, eu acho que ele foi corajoso, em uma liminar, e condizente com a Constituição, com os valores constitucionais brasileiros.

A partir dessa decisão, alguns passaram a invocar o possível manejo do artigo 142 da Constituição, que trata dos papéis das Forças Armadas…

Eu vi a posição de alguns e o artigo da Constituição não permite a intervenção das Forças Armadas no poder. Isso seria golpe de estado. Seria contra o estado de direito. Os poderes têm que funcionar de forma harmônica, independente e sem qualquer violação das suas competências. Não existe essa hipótese. Forças Armadas são para defesa da ordem social, quando solicitada. E não do funcionamento das instituições. É um erro a posição [interpretar o artigo 142 como autorizador de intervenção militar] colocada por alguns. De maneira alguma. Aí é golpe de estado.

Ou seja, a Constituição não prevê uma “intervenção militar constitucional”…

Nem genérica e nem específica. Ela permite [a intervenção] para a preservação da ordem pública. É diferente. Quando há situações difíceis na sociedade, mas não nos poderes. Os poderes têm que ser regulados entre si. Com equilíbrio.

Um dos juristas que deram essa interpretação ao 142 foi o professor Ives Gandra.

É verdade. Eu vi isso mas não concordo, não. Me coloco em uma posição de antagonismo pleno.

E de todo modo o senhor acha que no cenário atual existe algum risco real de que esse artigo 142 seja interpretado de maneira a permitir uma intervenção militar ou não?

Não. Não creio. Não vejo situação para isso. Nem no Executivo, nem no Legislativo e nem no Judiciário. Não há isso. Creio que até no momento mais grave, que está se aproximando, em função da pandemia, nós vamos ver o bom senso retornando aos três poderes.

De toda maneira, a gente tem assistido recentemente a algumas manifestações que pedem o fechamento do Congresso Nacional e do STF. Como o senhor as vê?

São pequenas. São pequenos grupos. Sempre há pessoas extremas em toda a sociedade. Há pouco tempo, nos Estados Unidos, em alguns estados, populares foram armados à porta da sede dos executivos dos estados para pedir a abertura do comércio. Sempre existem extremistas, sempre existem pessoas exageradas. Em Brasília também tem isso. Em São Paulo, há algumas manifestações, mas não são excessivas. É normal. Numa sociedade com 220 milhões de pessoas, há de tudo.

O senhor também já disse que a praça dos Três Poderes é a ágora da promiscuidade.

Isso é verdade. Eu continuo com a mesma ideia. Eu acho Brasília muito promíscua porque os três poderes estão muito próximos uns dos outros. Você vê que o presidente da República sai a pé, com um grupo de empresários, e vai à sede do Supremo Tribunal Federal. E do lado está o Congresso. É tudo muito próximo. E todos se aproximam muito uns dos outros. Isso não é bom. Eu gosto muito da ideia da Alemanha, onde o Judiciário está em uma cidade e a sede administrativa, em outra: Karlsruhe e Berlim [respectivamente]. E na Bolívia, é a mesma coisa: La Paz é a capital e o Judiciário fica em Sucre. Então, eu acho muito importante que estejam em cidades diferentes para não haver essa promiscuidade.

Mas o diálogo entre os poderes não pode ser saudável?

Não dessa forma. Não na forma de convívio diuturno. É saudável através das instituições, mas não através dos conchavos.

O atual presidente do STF tem assumido, de alguma maneira, um papel de moderador, de conciliador. O que o senhor pensa a respeito?

Eu acho que ele deveria ficar no lugar dele e julgar quando os autos chegam a suas mãos. Eu gosto muito da figura do juiz de Piero Calamandrei [autor do clássico ‘Eles, os juízes, vistos por um advogado’]. O juiz tem que ser calado. Ele não fala, ele trabalha e estuda com os autos. Não tem nada de moderador, não tem nada que ter diálogo. Ele é aplicador da lei. Não é função do juiz dialogar. O juiz brasileiro está entrando em assuntos que não são dele. Isso é mau. Sai da competência. Não vejo isso [papel de conciliação] na Constituição. Eu vejo que ele [juiz] é o grande aplicador da lei, que deve ser respeitado. Ele não é um expositor político.

Nos últimos anos, o Ministério Público, a Polícia Federal e o próprio Judiciário vêm encampando a bandeira do combate à corrupção. Um exemplo seria a “lava jato”. O senhor acha que houve excessos e, se houve excessos, se isso tem interferido no funcionamento da democracia?

Houve. Eu acho que a “lava jato” excedeu-se e a república de Curitiba foi extremamente violenta, agressiva e feriu direitos brasileiros. Se houve alguém que feriu a Constituição, foi a república de Curitiba. Fez com que vídeos fossem transferidos a meios de comunicação, conversas particulares oferecidas a meios de comunicação. Foi uma violência à intimidade. A república de Curitiba foi um mau exemplo para o Brasil.

E havia arcabouço jurídico para tanto?

Eu acho que as leis não permitiram. Houve uma certa fragilidade do Supremo, que permitiu. Alguns ministros do Supremo se opuseram, mas outros aceitaram e isso foi uma pena.

Mas o senhor já disse que algumas leis, como a que trata de organizações criminosas e da colaboração premiada, de 2013, não poderiam ter sido feitas da forma como o foram. Elas têm problemas?

Eu acho que tem, sim. Eu acho que as leis penais foram alteradas de forma excessiva. Importaram institutos do direito costumeiro, americano, para o Brasil. Que não fazem parte da nossa cultura. É um erro. Eu sou contra a delação premiada, da forma que foi aplicada no Brasil. Tornou-se uma forma horrível de irresponsabilidade penal.

E dá para consertar?

Ah dá, é só o Legislativo parar para pensar e perceber que se equivocou ao conceder ao Judiciário e ao Ministério Público institutos que são perigosos. Está se percebendo isso, já. Veja que o jogo já está começando a se equilibrar. Mas houve vítimas, Curitiba fez muitas vítimas. Desde o presidente Lula até outros que foram objeto de uma perseguição exagerada. Foi uma violação à democracia porque violou a lei.

O senhor acha que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff é um evento importante para essa turbulência democrática?

Eu acho que [o impeachment foi] negativo. Foi um erro, ela não cometeu crime nenhum, foi um julgamento político e no Brasil não há na Constituição julgamentos políticos. Se houvesse juízos políticos, ela poderia ter sido afastada, mas houve uma violação da própria Constituição. Aquilo foi um momento grave, gravíssimo, do jogo político brasileiro. Não há juízo político. Por juízo político, pode-se afastar, quando não se admira mais o presidente, o dirigente. Mas não por crime. Não houve crime. A oposição à Dilma ganhou, mas foi uma violência. Foi uma violência contra a democracia, foi aquilo que eu sempre disse, que não há golpe de estado pelas forças armadas, há golpe de estado por outras formas. Eu acho que [o impeachment] não foi legal. Não houve legalidade.

Em 2006, quando o senhor era governador, houve também eleição presidencial. Na época, criou-se o “movimento cívico pelos direitos dos brasileiros”, chamado de “Cansei”, capitaneado pelo hoje governador João Doria e pela Fiesp. Uma das bandeiras era o “fora Lula”. Ironizando a iniciativa, o senhor disse que aquilo era liderado por “um segmento da elite branca” e que “deve ter começado em Campos do Jordão”. O senhor acha que muito do que estamos vivendo hoje politicamente começou a ser gestado naquela época?

Bastante. Muito, principalmente a forma agressiva de agir politicamente, verbalmente, com agressão. É um erro. Eu acho que a elite branca devia compreender melhor o Brasil e saber que ele é um país muito complexo e muito difícil.

A expressão “elite branca” foi usada pelo senhor em uma conhecida entrevista à Folha de S. Paulo, quando era governador e o PCC fez os chamados “ataques de maio”. Como o senhor avalia a atuação dessa elite branca desde então?

Muito mal. Você vê a pandemia. Onde que a pandemia está agredindo mais a população? Onde não existe a elite branca, onde existe a pobreza, onde existe a miséria. Usando também a frase de 2006, ela está muito presente, infelizmente, também em 2020: nada mudou, piorou. A miséria está maior no Brasil, o brasileiro está se tornando cada dia mais miserável. E isso é grave. É amargo.

Quando o senhor usou essa expressão em 2006 e a usa agora, o senhor se refere a quem exatamente?

Todos nós que somos da classe média para cima temos uma falta de sensibilidade social muito grande. É muito claro.

Na época dos ataques, o senhor também disse que estava recebendo muitos pedidos para que se aplicasse a “lei do talião”. Quem fez esses pedidos?

Muitas pessoas. Já esqueci.

A resposta da Polícia Militar aos ataques, por exemplo, foi contundente. Agiu “para valer”. De certa maneira a “lei do talião” não foi aplicada?

Olha, eu tenho um respeito muito grande pela Polícia Militar, eu acho extremamente disciplinada, atuante e responsável. Se algo me deixa extremamente confortável no Brasil, é a presença da Polícia Militar. Ela tem atividade cívica, atividade policial, é uma polícia exemplar a Polícia Militar de São Paulo.

Mas não é de hoje que as vítimas de atividades policiais costumam ter cor, idade e gênero. É uma coincidência?

Não é coincidência. Faz parte da miséria brasileira. A miséria brasileira que leva a isso. Aqui é igual aos Estados Unidos. São os segmentos pobres que sofrem mais no confronto policial. Porque são mais ativos na área criminal menor. O pequeno delito.

O senhor acha que seria preciso revisar protocolos e posturas institucionais da Polícia Militar?

Eu acho que ela tem uma estrutura legalista e também disciplinar muito boa. Há excessos, às vezes, que são próprios do agir humano, mas ela é bastante dedicada e cuidadosa. E isso eu falo por experiência.

O senhor chegou a defender também que as conversas entre advogados e presos fossem gravadas. Isso no auge da crise de 2006. O senhor mantém a afirmação? Acha que é uma saída interessante?

Não, não mantenho, não. Foi um momento de desespero, mas eu não diria a mesma coisa. Acho que seria excessivo, errado e ilegal.

E desde os ataques de 2006, presídios de outros estados, principalmente do Norte e Nordeste do país, tiveram rebeliões violentíssimas. Houve um espalhamento?

Eu não acho que exista o que se coloca como ramificação de algum segmento de São Paulo. Isso é endêmico no Brasil, está em todo lugar, a pobreza leva a isso.

Na entrevista em que mencionou a culpa da “elite branca” em relação aos ataques do PCC, o senhor disse que ela teria que “abrir a bolsa”. A questão tributária no Brasil está mal resolvida?

Muito mal. O Brasil tem um sistema tributário pateticamente ruim. Você vê que o que paga muito imposto é o consumo. E consumo é sobre os pobres. É uma coisa louca. Então, é totalmente deformado. O sistema tributário foi feito pela elite branca. Tem que refazer.

Relacionando essa discussão sobre sistema tributário com a Constituição: logo após sua promulgação, muitos disseram que ela traria problemas orçamentários. Isso pode ameaçar a Constituição?

Não. Precisa conseguir equacionar as situações. Precisa tornar o sistema tributário mais equânime, mais justo. Acho que a problemática não é mais essa ideia do Delfim Netto [de que a Constituição não cabe no PIB]. A Constituição é apenas analítica demais, é exagerada, é uma Constituição extremamente volumosa, teria que ser revista, isso é óbvio. Mas não é ela que está criando problemas. O Brasil precisa de direitos sociais, e eles são poucos, a sociedade precisa de uma assistência e não há como discutir isso. E se não houvesse o SUS agora na pandemia? Não há o que falar. Então é ficar quieto e fazer uma mudança tributária com mais equilíbrio e com mais bom senso.

O senhor se considera um liberal, correto? Em que sentido?

Certamente. Em sentido da preservação da liberdade, mas não do estado liberal mínimo, isso não. Isso é uma ingenuidade do terceiro mundo. Tem que ter um estado ativo e bastante atuante para afastar as iniquidades sociais. Preservada a liberdade. Eu acho que você pode ser um liberal na defesa dos direitos humanos, principalmente na liberdade de expressão, e ao mesmo tempo saber que o Estado tem que intervir e ser ativo para afastar as iniquidades.

Algumas pessoas que se arvoram liberais dizem que elas são liberais na economia e conservadoras nos costumes. Isso faz sentido?

Não. O liberal tem que ter consciência social; se ele não tiver consciência social, ele apenas defende o estado mínimo. Essa pessoa tem um caráter mau porque só pensa nos interesses de determinados segmentos e, portanto, não tem ideia de coletividade. Eu acho que há um grande equívoco do Brasil atual: o estado mínimo no sentido pleno da escola de Chicago. É preciso ter uma ideia um pouco mais ampla, mais aberta, e buscar o Lord Keynes e não [Milton] Friedman.

O senhor acha que a Covid-19 vai mudar o paradigma de economia política no Brasil e no mundo?

Eu acho que sim. Não vai se manter mais a ideia de estado mínimo. Porém, eu não sou otimista quanto à bondade humana, eu acho que o ser humano vai ficar cada vez mais egoísta e vai sair dessa crise mais egoísta.

O Brasil talvez tenha um “estado máximo”: a população carcerária que triplicou nos últimos 20 anos. É um problema?

É um problema, claro. A legislação penal tem que ser revista. O que está aí é impossível manter uma população carcerária nesses números.

E há quem defenda o estado mínimo e, ao mesmo tempo, o recrudescimento da legislação penal.

É tolo. Não sabe o que diz.

A legislação de drogas deveria ser revista, já que cerca de 40% da população carcerária cometeu crimes relacionados à lei de drogas?

É um tema muito complexo porque também traz muitas emoções, mas essa legislação tem que ser revista, principalmente para o usuário. A legalização plena [das drogas], eu acho perigosa.

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