João Valsecchi do Amaral, diretor-geral do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
Edição: Scriptum
O Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá tem, nas palavras do seu diretor-geral, João Valsecchi do Amaral, uma missão que parece bastante extensa: “produção de conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico para conservação da biodiversidade, manejo de recursos naturais e melhoria da qualidade de vida das populações amazônicas”.
Trata-se de uma organização social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) fundada em 1999. Entre as ações que desenvolve, técnicas de manejo sustentável do peixe pirarucu, treinamento em turismo de base comunitária, implementação de outras atividades econômicas sustentáveis como artesanato e agricultura familiar, sempre com foco em conservação da biodiversidade, como aponta Amaral, na entrevista a seguir.
O dirigente afirma que os cortes orçamentários delimitados pela equipe econômica do Governo Federal nos últimos anos – optou-se por um contingenciamento linear das despesas de governo – criaram dificuldades à execução de projetos e à atuação do Instituto. Mas a ação do Ministério limitou o cenário de crise, permitiu recomposições de orçamento e gerou “ambiente de confiança e espaço de discussão onde tanto os representantes do Ministério se posicionavam de forma aberta, mostrando os entraves e dificuldades, bem como os diretores das Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais”.
De forma geral, quais são as grandes linhas de atuação hoje do Instituto Mamirauá e como têm se desenvolvido as pesquisas na instituição?
O Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá atua na produção de conhecimento científico e no desenvolvimento tecnológico para a conservação da biodiversidade, para o manejo de recursos naturais e para a melhoria da qualidade de vida das populações amazônicas.
A amplitude dos objetivos e campo de atuação do Instituto Mamirauá torna a pesquisa no âmbito institucional, multi e transdisciplinar, abrangendo diversas áreas do conhecimento das ciências sociais, biológicas, exatas e da saúde.
De forma bastante resumida, podemos agrupar as pesquisas do Instituto Mamirauá em cinco grandes áreas, que tratam da biodiversidade, ecologia e conservação de espécies amazônicas; do manejo de recursos naturais e do desenvolvimento de tecnologias sustentáveis; da Organização social e governança socioambiental; de práticas arqueológicas e gestão de patrimônio cultural; e de geotecnologias e gestão territorial.
O Mamirauá tem um papel no debate e desenvolvimento de pesquisas voltadas ao desenvolvimento sustentável. Como o sr. coloca este debate hoje, frente à época da criação do Instituto e como o Mamirauá tem buscado se posicionar considerando a evolução das discussões?
O Instituto Mamirauá foi pioneiro ao introduzir um novo paradigma de conservação da biodiversidade, onde a conservação do meio ambiente não seria possível sem a participação da população local. A relevância do trabalho na região e a capacidade de replicação das ações propostas e implementadas pelo Instituto Mamirauá permitiu que as ações fossem formalmente absorvidas como iniciativa governamental por meio da criação do IDSM em 1999, e da assinatura do primeiro Contrato de Gestão com o na época Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
Hoje, no ano do 20º aniversário do Instituto Mamirauá, podemos dizer que somos reconhecidos como um dos centros de excelência do MCTIC e provavelmente um dos poucos centros de pesquisa que atua na interface entre pesquisa, conservação da biodiversidade, desenvolvimento social, manejo e gestão no Bioma Amazônico.
A conservação da biodiversidade associada ao desenvolvimento local e regional permanece como um tema ainda não completamente absorvido por alguns segmentos da sociedade, especialmente por muitos tomadores de decisão. Ao mesmo tempo, as ferramentas para realizar conservação em parceria com atores locais, e concomitante à melhoria da qualidade de vida dos povos tradicionais, não estão completamente desenvolvidas ou disponíveis.
Frente a esse cenário o Instituto Mamirauá mantém seu protagonismo na geração de conhecimento sobre a biodiversidade, no desenvolvimento de tecnologias sociais e na proposição de estratégias de manejo de recursos naturais que sejam sustentáveis e participativas. Temos ainda como objetivo estratégico difundir o conhecimento gerado e as tecnologias desenvolvidas para que o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia cumpra seu papel como protagonista do desenvolvimento sustentável da Região Amazônica.
Como o sr. qualifica a importância dada hoje à ciência da sustentabilidade no Brasil? E como pode se desenvolver maior conscientização da sociedade em torno deste tipo de atuação científica?
As estratégias de conservação da biodiversidade com manejo participativo dos recursos naturais desenvolvidas e implementadas pelo Instituto Mamirauá vêm contribuindo para a implementação de políticas públicas social e ambientalmente adequadas à Região Amazônica, aos seus ecossistemas e às suas populações tradicionais. É provável que alguns dos exemplos mais bem-sucedidos de manejo de recursos naturais neste bioma sejam fruto da ação institucional.
Um bom exemplo é o manejo do pirarucu, espécie considerada ameaçada e protegida no passado, que atualmente é utilizada de forma sustentável. Ao mesmo tempo em que registramos a recuperação populacional nas áreas onde a tecnologia de manejo foi implementada, verificamos o incremento na renda familiar e melhoria dos padrões de vida local. Entre tantas outras iniciativas, podemos citar o desenvolvimento de tecnologia adequada para o manejo de espécies madeireiras no ambiente de várzea, a construção de um modelo de turismo de base comunitária com mecanismos próprios de gestão, bem como a implementação de outras atividades econômicas sustentáveis adequadas à realidade regional como artesanato, agricultura familiar e meliponicultura (manejo de abelhas nativas sem ferrão).
Essas iniciativas de manejo, baseadas fortemente na produção científica associada ao conhecimento tradicional, beneficiam milhares de famílias amazônicas, fazendo com que muitas delas entrassem pela primeira vez no mercado formal. Essas ações devem ser entendidas como fundamentais para o desenvolvimento da Região Amazônica, em contraposição a modelos desenvolvidos em outras localidades e não adequados ao Bioma.
É importante destacar que outras iniciativas de conservação, não associadas à geração de renda, têm sido exitosas. Temos verificado que populações de espécies sob algum grau de ameaça estão se recuperando, como os peixes-boi e ariranhas. Outras utilizadas regionalmente demonstram potencial de manejo, seja para alimentação local, como a paca, ou mesmo para o comércio, como os jacarés.
Necessitamos continuar testando e transferindo as tecnologias já implementadas, por meio de programas de difusão científica e tecnológica, aos setores da sociedade interessados ou relacionados ao tema. Também precisamos desenvolver novas tecnologias para atender às necessidades de conservação e de desenvolvimento regional.
No que compete a conscientização sobre o tema, é importante que primeiro os tomadores de decisão se conscientizem que a geração de conhecimento científico é a base para o desenvolvimento regional. Sem as informações necessárias e sem o desenvolvimento de tecnologias adequadas não será possível conciliar o desenvolvimento econômico regional com a conservação da biodiversidade. Talvez seja mais difícil conscientizar essa esfera do que outros segmentos da sociedade, que por terem outro tipo de ligação com o meio ambiente, ou mesmo por necessidade, já compreendam que é necessário a construção de um novo modelo de desenvolvimento.
De que forma cortes orçamentárias sofridos pelo sistema nacional de Ciência e Tecnologia, de uma forma geral, e também pelo Instituto Mamirauá, afetaram o desenvolvimento de pesquisas e projetos, e de que forma esses desafios têm sido contornados? Qual o papel da gestão do MCTIC encerrada em dezembro de 2018 no enfrentamento desses desafios?
Ao longo dos últimos quatro anos, em decorrência da abrupta interrupção das transferências e redução dos recursos financeiros do Contrato de Gestão, o Instituto Mamirauá sofreu com uma redução de 47% do pessoal e o fechamento de quase 50% da infraestrutura de campo, impactando não somente a atividade científica como todas as coordenações de manejo e desenvolvimento social e processos institucionais. Em consequência disto, 73% dos projetos estruturantes e de tecnologia da informação e comunicação (TIC), 14,5% dos projetos internos de pesquisa e 36% dos projetos externos de pesquisa foram sumariamente cancelados por falta de recursos disponíveis. Dos 89 projetos de pesquisa internos e 22 externos que não foram cancelados em 2015 ou 2016, 70% deles tiveram suas ações temporariamente interrompidas ou reduzidas em algum momento. Neste período o Instituto Mamirauá dependeu em grande parte de sua capacidade de captação de recursos externos. Somente com esses recursos adicionais foi possível “manter as portas abertas”.
Somente em 2018, durante o período de gestão do ministro Gilberto Kassab e do secretário-executivo Elton Santa Fé Zacarias, tivemos algum sinal de recuperação. Foi possível com recursos adicionais ao Contrato de Gestão retomar parte das ações interrompidas e garantir o pagamento da folha. Esta recuperação, que também contou com apoio de outros financiadores, resultou no aumento da produção científica institucional e possibilitou manter o assessoramento aos grupos de manejadores locais.
Entretanto, é necessário destacar que o cenário de ciência e tecnologia no país ainda é precário. É necessário que o planejamento feito no passado seja retomado e que ocorra uma recomposição orçamentária para que os institutos de pesquisa retomem suas atividades em sua totalidade.
Necessitamos continuar testando e transferindo as tecnologias já implementadas aos setores da sociedade interessados ou relacionados ao tema.
Que análise o sr. faz da atualização do Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, regulamentado em 2018? Lembrando que, entre outros aspectos, a regulamentação do Marco Legal torna mais simples a parceria entre entes públicos e agentes privados, captação de recursos do exterior e outras iniciativas. De que maneira esse instrumento pode aperfeiçoar ações empreendidas no âmbito do Mamirauá?
O novo Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação, regulamentado em 2018, trouxe a expectativa de desburocratizar as atividades de pesquisa e inovação no país. Ele também favorece criação de um ambiente de inovação tecnológica mais dinâmico no Brasil, uma vez que foram criados mecanismos que permitem integrar instituições científicas e tecnológicas e a interação dessas com empresas do setor privado. No entanto, os avanços práticos ainda são tímidos. Enquanto as instituições de pesquisa não puderem contar com os recursos básicos, sejam financeiros ou humanos, não poderemos avançar da forma plena, ainda que o novo marco legal facilite muitos aspectos.
Considerando de uma forma ampla, que avaliação o sr. faz da gestão encerrada em dezembro último no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações? Que avaliação faz, por exemplo, da estratégia de fortalecimento da Diretoria de Organizações Sociais e Institutos de Pesquisa?
Considero que a gestão recentemente encerrada teve êxito em seus objetivos, especialmente considerando o cenário político e econômico na qual estava inserida. Foi de fundamental importância fortalecer a Diretoria de Organizações Sociais e Institutos de Pesquisa, principalmente pela composição de uma equipe com grande competência de administração como destacado pelo secretário Álvaro Prata (Secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTIC) em entrevista a esse mesmo canal. Isso gerou um ambiente de confiança e consolidou de um espaço de discussão aberto, onde tanto os representantes do Ministério se posicionavam de forma aberta, mostrando os entraves e dificuldades, bem como os Diretores das Unidades de Pesquisa e Organizações Sociais.
Como avalia o papel desempenhado pelo ministro Gilberto Kassab? A se considerar sobretudo os aspectos da relação com as entidades de pesquisa, o enfrentamento de restrições orçamentárias e luta por recursos junto à equipe econômica.
É difícil avaliar em sua totalidade o papel desempenhado pelo ministro Gilberto Kassab. Sabemos que outras forças políticas influenciam qualquer gestão e a restrição orçamentária adotada pelo Governo Federal afetou profundamente todos os ministérios, inclusive o MCTIC. Sabemos que a ciência e tecnologia não é prioridade para muitos governantes, muito provavelmente por não compreender o seu papel como impulsionador do desenvolvimento do país. Neste sentido, acredito que existe compreensão por parte do ministro Gilberto Kassab. Seu desempenho político permitiu a recomposição de parte do orçamento do Ministério, a atualização do Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação e a construção de um ambiente de interlocução entre o governo e os representantes dos Institutos de Pesquisa e Organizações Sociais. Ademais, os esforços empenhados para o enfrentamento de restrições orçamentárias foram fundamentais para que as ações desempenhadas pelos Institutos de Pesquisa e Organizações Sociais do MCTIC não fossem completamente paralisadas e, em alguns casos, até mesmo para a sobrevivência de algumas instituições.