MUNICÍPIOS

Editoriais de Folha e Estadão criticam ameaça ao Cidade Limpa

Jornais apontam o perigo de retrocesso em projeto de lei que tramita na Câmara Municipal e pode permitir a volta de outdoors na paisagem da cidade.

06/09/2020

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Editoriais publicados neste fim de semana pelos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo criticam o projeto de lei em tramitação na Câmara Municipal, já aprovado em primeira votação, que busca permitir a volta de outdoors na paisagem urbana da cidade, ameaçando conquistas obtidas com a Lei Cidade Limpa, aprovada na gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab, em 2006.

“Parecem claros os riscos de que a nova lei, se aprovada, acarrete redução do controle sobre o cenário urbano e estabeleça um novo patamar para investidas contra a legislação em vigor. São pertinentes as preocupações sobre a possibilidade de que a autorização para prédios privados, hoje vedada, possa levar a autorizações em cascata para outras áreas”, escreve a Folha.

“A Cidade Limpa é motivo de orgulho para a capital paulista e um exemplo para outras cidades. Os paulistanos não tolerarão que, em troca de alguns trocados sabe-se lá para quem, sua cidade seja novamente inundada por milhares de outdoors, faixas, cartazes, bonecos infláveis, lambe-lambes, cavaletes e outras tralhas em geral de péssimo gosto. Se a atual legislatura não quiser poluir sua reputação, precisa abortar esta tentativa de estupro visual do espaço público”, avalia o Estadão.

Aprovada pela população, Cidade Limpa virou exemplo

A Lei Cidade Limpa mudou drasticamente a paisagem urbana da capital paulista. Imensos outdoors que ocupavam as principais ruas e avenidas da cidade desapareceram e as placas de identificação das lojas tiveram o tamanho padronizado. A propaganda deu lugar à arquitetura da cidade e São Paulo se tornou um lugar visualmente mais agradável.

A Lei Cidade Limpa ganhou a simpatia do paulistano, com aprovação de 89%, e teve repercussão internacional. Recebeu o prêmio Werkbund-Label, conferido pela Federação Alemã de Obras do estado de Baden-Wurttemberg.

A nova legislação eliminou a poluição visual em São Paulo ao proibir todo tipo de publicidade externa, como outdoors, painéis em fachadas de prédios, backlights e frontlights. Também ficaram vetados anúncios publicitários em táxis, ônibus e bicicletas.

A legislação ainda fez restrições aos anúncios indicativos, aqueles que identificam no próprio local a atividade exercida, que ganharam medidas máximas definidas para cada caso. Além de despertar o interesse de cidades, como Buenos Aires, Lisboa, Atenas, Seul e Londrina, e países como a Alemanha e o México, a Lei Cidade Limpa também foi destaque no pavilhão da Cidade de São Paulo na Exposição Universal de Xangai, em 2010.

Confira abaixo os editoriais.

Folha de S. Paulo:

Paisagem ameaçada

Projeto que flexibiliza Lei Cidade Limpa é retrocesso e deveria ser vetado

Não foi sem intensa polêmica e contestações que a cidade de São Paulo aprovou, em 2006, a Lei Cidade Limpa. Vigorando desde janeiro de 2007, a legislação mudou drasticamente —e para melhor— a paisagem da capital ao disciplinar a presença de publicidade em suas vias e edificações.

A principal novidade foi o veto à exploração publicitária em lotes e edifícios, reservando-se seu uso para situações específicas em equipamentos públicos, com geração de recursos para a cidade.

Ao longo desse período, os paulistanos, de modo geral, aderiram e habituaram-se ao novo padrão, embora algumas tentativas de burla tenham se insinuado —e continuem a se manifestar.

É o caso atual de um projeto de lei que permitiria a colocação de outdoors no topo de prédios. A proposta, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Tuma (PSDB), foi aprovada em primeira votação no final de agosto, mas ainda terá que passar por uma nova rodada no plenário antes de eventual sanção do prefeito Bruno Covas (PSDB).

Apesar de o texto estabelecer aprovação prévia das peças pela CPPU (Comissão de Proteção à Paisagem Urbana), a iniciativa gerou justificada reação contrária de diversos setores, entre os quais urbanistas e técnicos da prefeitura.

Teme-se, com razão, que a novidade venha a se constituir numa espécie de “passar a boiada” —expressão usada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para acelerar a desregulamentação ambiental enquanto as atenções voltavam-se para a pandemia.

O autor do projeto alega que a paisagem arquitetônica da cidade seria preservada, sem o risco de liberação indiscriminada, uma vez que, além do aval da CPPU, o descontrole propiciaria redução do valor dos espaços para a exibição publicitária. Trata-se de argumento de ocasião.

Parecem claros os riscos de que a nova lei, se aprovada, acarrete redução do controle sobre o cenário urbano e estabeleça um novo patamar para investidas contra a legislação em vigor. São pertinentes as preocupações sobre a possibilidade de que a autorização para prédios privados, hoje vedada, possa levar a autorizações em cascata para outras áreas.

Espera-se que a tentativa de Tuma não prospere e que o prefeito Bruno Covas tenha o bom senso de vetar o projeto, caso aprovado pela Câmara. A Lei Cidade Limpa é uma conquista a ser preservada.

 

O Estado de S. Paulo:

Cidade Limpa em risco

Atual legislatura precisa abortar esta tentativa de estupro visual do espaço público

A Câmara dos vereadores de São Paulo aprovou, em primeiro turno, um projeto de lei que debilita a Lei Cidade Limpa permitindo a instalação de outdoors no topo dos prédios. Entre as muitas e renitentes mazelas que degradam a qualidade de vida dos paulistanos – engarrafamentos, poluição dos rios, assentamentos ilegais, ruas esburacadas -, a restauração da paisagem urbana foi uma das poucas conquistas que literalmente saltaram aos olhos. Se as mudanças forem aprovadas, o retrocesso será igualmente visível.

Aprovada em 2006, a Cidade Limpa proibiu a propaganda em outdoors e regulamentou o tamanho de letreiros e placas de estabelecimentos comerciais. O refrigério foi um marco da cidadania paulistana reputado internacionalmente e prestigiado pela ampla maioria da população. Como diz o informativo da própria Prefeitura, a lei recuperou “certos direitos fundamentais da cidadania que haviam se perdido com o tempo. O direito de viver em uma cidade que respeita o espaço urbano, o patrimônio histórico e a integridade da arquitetura das edificações. O direito a um relacionamento mais livre e seguro com as áreas públicas. A Lei Cidade Limpa significa a supremacia do bem comum sobre qualquer interesse corporativo”. Agora esta supremacia está ameaçada.

Eduardo Tuma (PSDB), autor do projeto e presidente da Casa, argumenta que em tempos de pandemia “a mudança vai permitir geração de renda, aquecimento da economia e ampliação da receita tributária”. Mas, como disse o consultor em política urbana Gabriel Rostey à Rádio CBN, isso é uma falácia. Primeiro porque o vereador já tentara emplacar o mesmo projeto em 2013 e depois em 2015. Depois porque, antes da lei, a profusão de outdoors pulverizava o valor da publicidade, gerando retornos irrisórios para o poder público e a iniciativa privada. Agora, ao contrário, a restrição das peças publicitárias a espaços seletos, como terminais viários, dá à Prefeitura poder de barganha que pode ser convertido, por exemplo, em mobiliário urbano ou pontos de ônibus.

De resto, como notou em artigo no Estado o urbanista da Universidade Mackenzie Valter Caldana, em relação ao montante geral do orçamento do Município, os valores não compensarão os estragos. Segundo ele, a Cidade Limpa foi “a maior vitória no campo da urbanidade que São Paulo vivenciou neste século” e seus benefícios não se limitam à paisagem, mas “vão da área da saúde à área econômica, pois fazem a cidade mais atrativa nacional e internacionalmente e, portanto, com melhor ambiente de negócios”. Numa época de profusão dos meios de comunicação digital, a proliferação de outdoors conspurcando os céus da cidade seria, além de tudo, anacrônica.

Em anos recentes, a eficácia da lei já estava sob pressão por causa da negligência das autoridades. Na gestão de Fernando Haddad (PT) algumas regras foram desidratadas e as multas aos infratores chegaram a cair 90%. Agora, especialistas ouvidos pelo Estado apontam que a permissão de publicidade para um setor – no caso, os edifícios – pode gerar uma reação em cadeia, sob o pretexto de sustentar o princípio constitucional da isonomia.

No campo da poluição visual, não faltam tarefas ao poder público. Como disse Caldana, “existem muitas outras prioridades que precisam de atenção, como, por exemplo, as calçadas, o enterramento da fiação, mobiliário urbano e arborização”.

A Cidade Limpa é motivo de orgulho para a capital paulista e um exemplo para outras cidades. Os paulistanos não tolerarão que, em troca de alguns trocados sabe-se lá para quem, sua cidade seja novamente inundada por milhares de outdoors, faixas, cartazes, bonecos infláveis, lambe-lambes, cavaletes e outras tralhas em geral de péssimo gosto. Se a atual legislatura não quiser poluir sua reputação, precisa abortar esta tentativa de estupro visual do espaço público. Se não, cabe ao prefeito Bruno Covas (PSDB) vetar a infâmia. Em última instância, as urnas dirão, espera-se, a quem serve esta manobra, se ao interesse comum de todos ou aos interesses corporativos de uns poucos.

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